quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

 

No rastro do cabaré Balalaika

(parte 2)

pelotasdeontem.blogspot.com

A.F.Monquelat

 

         Dando continuidade ao nosso texto, No rastro do cabaré Balalaika, e diante do anúncio publicado no jornal A Opinião Pública de 27 de novembro de 1941, que foi o primeiro e mais antigo que conseguimos localizar, podemos nos permitir especular sobre alguns tópicos além da estranha grafia para designar a atividade de bar: ora, pensar que um bar. Ora , pensar num bar que, em nosso entender era na realidade uma casa noturna que abrigava um restaurante, com pratos grelhados, e pudesse ( pelo menos era o anunciado) todas as semanas promover novas estréias procedentes do Rio de Janeiro, São Paulo, e outras localidades, não nos parece muito viável dado os custos que sem dúvida deveriam ser bastante elevados.

 É também bastante possível supor que naquele dia, 27 de novembro de 1941, dia da estréia do notável sambista DEO COSTA, não estivesse muito distante a data de inauguração do Balalaika.

         Admitindo que sim e ainda conforme o mesmo anúncio pode-se estabelecer, como primeiro local de instalação do Dancing, a Rua Marechal Deodoro, quasi esquina Floriano, contrariando assim todas as informações que obtivemos quanto a outros locais de localização do cabaré Balalaika.

         No entanto, e mesmo diante de uma prova impressa quanto à localização, não aceitamos a hipótese do meu pai ter apontado para a esquina errada, a da Rua Barão de Santa Tecla, ou de eu ter sido assaltado por uma falsa memória; assim continuamos procurando por novos rastros.

         Já no ano posterior, 1942, vamos encontrar novos anúncios nos quais o endereço permanecia o mesmo para o Baar Balalaika, mas, como se pode observar, as apresentações haviam sido enriquecidas com novas atrações. Agora, além do notável sambista DeO COSTA, havia também a presença e participação das bailarinas NADIA E BLANCO BRANCA bem como a bailarina IVONE DE CORDOBA.


Tal anúncio perdurou em pelo menos um dos jornais da época, ainda por algum tempo até que em dado momento o dito Baar Balalaika desaparece por completo das páginas dos órgãos de imprensa da cidade.

Acreditamos então que nesse ínterim tenha ocorrido a mudança de local e de nome, já que o Baar Balalaika dera lugar ao dancing Balalaika, agora instalado no sobrado da Rua Barão de Santa Tecla esquina de Marechal Floriano, local que ainda vive na memória de alguns, como pude verificar após a publicação da primeira parte deste artigo aqui no DM e que entraram em contato comigo, se dispondo não só a me darem informações quanto ao dancing assim como sobre alguns que ali atuaram de diversas maneiras; e aqui aproveito para agradecê-los.

Nosso reencontro com o rastro do Balalaika volta a ocorrer, na continuidade da nossa pesquisa, através da coluna FATOS DO DIApublicada no jornal A Opinião Pública, dia 23 de agosto do ano de 1948, onde é dito que às 3 horas da madrugada daquele mesmo dia, o plantão da Delegacia de Polícia, inspetor Maio, foi chamado pelo cabo Noé Fagundes, para que  fosse aplacar os ânimos no interior do dancing Balalaika, à Rua Barão de Santa Tecla, local no qual um dos freqüentadores, depois de várias libações, promovia desordens.

Junto ao local, o inspetor constatou que um dos freqüentadores, o Sr. Jorge Farah, tinha se excedido a tal ponto em suas provocações aos freqüentadores presentes, que a dona da casa resolvera fechá-lo, em virtude de terem abandonado o salão todos os que ali se encontravam.

Abordando o turbulento, o inspetor intimou-o a moderar-se, tendo sido obrigado a detê-lo, momentos depois, no Restaurante Gago, situado à Rua Marechal Floriano, já que ali continuaram as suas ameaças e provocações aos que se encontravam no restaurante.

Deve ter percebido o leitor, por certo, mas queremos reforçar o fato do Balalaika, pelo menos naquela época pertencer a uma mulher, como se pode observar na notícia: a dona da casa resolvera fechá-lo.

Outra observação que julgamos pertinente salientar é a da já existência do famoso Restaurante Gago, na Floriano entre Deodoro e Santa Tecla, restaurante, se não me falha a memória, diurno e noturno, sendo a noite um dos locais preferidos da boemia pelotense e que também servia de ponto de embarque e desembarque de passageiros em especial oriundos do Uruguai ou indo para este.

O Restaurante Gago, juntamente com os restaurantes 35 e o Restaurante Recreio Pelotense, sendo o 35 na Rua 15 de          Novembro esquina Cassiano e o Recreio Pelotense na Andrade Neves esquina da Cassiano, eram o porto de encontros e desencontros dos amantes da noite pelotense, sendo que tanto um quanto outro tinham no seu interior, recantos reservados com o intuito de evitar olhares curiosos dos transeuntes e até mesmo de outros freqüentadores.

Continua...

 

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Fonte de pesquisa: Bibliotheca Pública Pelotense-CDOV

Tratamento de imagem: Tatiele B. Moro

 Revisão do texto: Luiz Roberto C. P. da Conceição   

 

domingo, 29 de novembro de 2020

 

No rastro do Cabaré Balalaika

(parte 1)

        

A.    F. Monquelat          

        

Certa feita, caminhando pelas ruas da cidade, acompanhado do meu pai, a certa altura de uma das ruas, quase esquina da Rua Marechal Floriano, ele me fez parar e olhar para cima, onde havia um sobrado, falando logo em seguida: “Ali ficava o famoso Balalaika”, e não disse mais nada. Foi a primeira vez que ouvi tal nome. As caminhadas com ele me foram bastante proveitosas e delas até hoje sinto falta, pois, através dessas, muito aprendi sobre diversas coisas e fatos da cidade. Na verdade, dizer que eu caminhava com meu pai é de certa forma um eufemismo, uma maneira de dizer que eu troteava ao lado dele, quem sabe até seja melhor dizer que eu troteava atrás dele tentando acompanhá-lo.

         Meu pai não tinha passadas longas, mas caminhava muito rápido, tentar andar ao seu lado era quase impossível, e não raras vezes eu ficava para trás.

         Com meu pai aprendi muitas coisas, dentre elas a gostar de corridas de cavalos e, por muitas vezes fui com ele ao hipódromo da Tablada onde ele me ensinou como apostar nas corridas, isso somente depois de “estudar” alguns detalhes importantes no programa, tanto sobre o jóquei quanto o cavalo. Dicas essas que se não nos davam certeza de ganhar auxiliavam em pelo menos não errar muito feio. Ao hipódromo íamos de ônibus e de a pé; também, uma vez por semana eu acompanhava o meu pai até a sede do Jockey Club, na Rua Sete de Setembro, aonde ele ia para apanhar o Programa das corridas e conversar com amigos dele, turfistas. Com o programa em mãos, descíamos a escadaria e, ao lado da sede, entravamos no Café Derby onde meu pai sentava com amigos ou conhecidos para conversarem sobre “carreiras” passadas e as “barbadas” para as próximas, acrescidas essas, ou não, de informações de cocheira, que nem sempre aconteciam.

         Minha primeira ida ao porto da cidade foi também com meu pai, pois, uma vez por mês, pelo menos, ele ia até a Alfândega, que algumas pessoas, não poucas, chamavam de Mesa de Rendas, que ficava no porto. Íamos de Lotação, como eram chamados os carros que faziam a linha centro-porto e vice-versa. Tais conduções, que ficavam estacionadas defronte ao Índio da Sorte, uma espécie de casa lotérica. Localizada entre a Praça Coronel Pedro Osório e o Beco da Bibliotheca Pública, pouco conhecido como Travessa Conde de Piratini. Dali o veículo saía em direção a Rua XV de Novembro até a Benjamin Constant, onde dobrava à esquerda em direção à Praça da Alfândega, ou pracinha do Porto, cujo nome de batismo é Domingos Rodrigues.

         Nos anos quarenta, possível período de inauguração do Balalaika, Pelotas se encontrava entre as duas ou três dezenas das maiores cidades do Brasil. A política nacional vivia espremida pela ditadura varguista, e não poucos acreditavam que o nazismo dominaria o mundo. Era uma cidade industrializada e de vida noturna efervescente, com vários cinemas, dancings, prostíbulos, clubes, gigolôs, mendigos e operários, que em sua maioria habitavam os inúmeros cortiços existentes na cidade.

         E é nesse cenário e ambiente que o jornalista e poeta Fernando Melo fez desfilar os personagens do seu livro “Os fios telefônicos”, mais precisamente no ano de 1944, onde, a certa altura da narrativa nos diz: "Atravessou a rua e contemplou o sobrado do Balalaika da calçada fronteira. Os fios telefônicos, finos e pretos, corriam ao lado das casas, dentro do nevoeiro de junho".

         Com esse depoimento de época, confirmamos a lembrança que temos do meu pai apontar em direção a um sobrado e dizer que ali naquele sobrado ficava o famoso Balalaika, o que até bem pouco tempo ainda não tínhamos certeza era em qual esquina da Rua Marechal Floriano ficava o tal sobrado, ao qual tanto o Fernando Melo quanto meu pai dizia ficar. Em nossa lembrança era na esquina da Rua Barão de Santa Tecla, mas que não conseguíamos comprovar, por falta de prova documental.

         Conversamos e indagamos sobre o Dancing Balalaika com diversas pessoas, havendo até quem nos dissesse que sua localização era na Santos Dumont esquina Marechal Floriano, em um sobrado com cimento penteado.

         É bem verdade que, durante o longo tempo em que nos dedicamos a pesquisar o basfond pelotense, nunca foi nosso objetivo nos aproximarmos da década de 40 do século XX, restrição essa que optamos por abandonar desde que nos envolvemos com a obra do jornalista Fernando Melo, onde fomos encontrar a primeira prova documental da existência do Dancing Balalaika.

         Quando me decidi por pesquisar o cabaré Balalaika é que me dei conta que algumas pessoas que poderiam ter me dado algumas informações já não poderiam  fazê-lo por não se encontrarem mais entre nós, acrescido ainda da chegada da nefasta presença do vírus da COVID-19, o que acabou provocando o fechamento da nossa biblioteca pública, uma das nossas principais fontes de pesquisa.

         Logo após a reabertura, ainda que parcial, da Bibliotheca Pública Pelotense e seguindo o protocolo determinado pela diretoria, voltamos a pesquisar na expectativa de encontrar o rastro do Balalaika nos anos 40      do século XX, segundo a pista deixada por Fernando Melo.

         No CDOV, Centro de Documentação de Obras Valiosas onde se encontra a hemeroteca, perguntei ao Ueslei, responsável pelo setor se havia algo registrado, digitalizado ou não, com o nome de Balalaika ou qualquer informação que fosse sobre tal nome. Depois da busca feita, obtive “um não” como resposta.

         Então, mãos á obra: comecei pelo ano de 1944, pois quem sabe fosse aquele o ano de inauguração do Dancing         Balalaika.

         Depois de percorrer, atentamente o ano inteiro do jornal daquele ano percebi que não, que não fora o ano da inauguração bem como não havia a menor referencia que fosse sobre o dancing, tampouco nas ocorrências policiais que, no caso de tais atividades é muito comum e freqüente de serem encontradas.

         Perguntei-me: quem sabe o registro da inauguração ou qualquer outro que me indicasse o caminho a percorrer estivesse em ano anterior, no ano de 1943? Foi o que fiz a seguir, ainda sem êxito algum. Não desistir é o que faço, e foi assim que encontrei o primeiro rastro do Balalaika.


 

         Note o leitor que temos, no anúncio, a estranha e inusual grafia para a atividade do que ficou consagrado como bar, e não dancing como esperávamos encontrar.

 

                                                                                     Continua...

 

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Fonte de pesquisa: Bibliotheca Pública Pelotense-CDOV

Tratamento de imagem: Tatiele B. Moro

 Revisão do texto: Luiz Roberto C. P. da Conceição   

 


No rastro do cabaré Balalaika

 

quarta-feira, 18 de março de 2020

Entreguerras em Pelotas – Parte 03 O grande dia do Fascismo


Entreguerras em Pelotas – Parte 03O grande dia do Fascismo 


A. F. Monquelat
Jonas Tenfen



Prisão de Professor na Barbuda


            É notícia do jornal A Opinião Pública, de agosto de 1918, a prisão do professor Gustavo de tal que lecionava em língua alemã, somente em língua alemã, em um colégio clandestino na Barbuda.
            Recebera denúncia o intendente municipal, sr. dr. Cipriano Barcellos, que esta instituição de ensino funcionava na residência do agricultor Hans J. Crucius, localizada na Barbuda, 2° distrito deste município.
            No dia do fechamento da matéria, o subintendente, sr. capitão Pedro Dias, realizou batida de surpresa na casa do agricultor, encontrando sim as instalações de uma pequena escola. Na grande pedra negra que servia de lousa no recinto, havia alguns dizeres em alemão; os livros, e todo o mais que se encontrasse de material didático, estavam impressos apenas em germânico.
            Depois de preso, o professor Gustavo foi transportado para ser recolhido ao 2° posto.

Nota


            Depois da notícia reproduzida acima, não encontramos mais fechamento de escolas alemãs em Pelotas no período que compreende o fim da Primeira Guerra Mundial e o Entreguerras. Depois de afastadas do centro, do entorno, naquele momento foram fechadas no interior do município. A conclusão desenhada aqui é a de que as escolas que ensinavam somente em língua alemã foram extintas no período, embora continuasse a circulação de material impresso de forma mais ou menos clandestina.
            Passaremos agora a um período específico do Entreguerras, quando uma série de ideias europeias começou a circular nos centros urbanos. Pelotas não poderia ficar de fora, por isso

Saudação Fascista no Guarany


            A Ilustração Pelotense, em seu décimo número, descreveu a visita à cidade de Rio Grande e de Pelotas, principalmente desta, da Nave-Exposição Itália, um cruzeiro de propaganda pelos países da América Latina.
            A agenda da visita das autoridades e artistas na cidade de Pelotas – referida na matéria como Embaixada Itália – começou com a recepção do intendente, dr Pedro Luiz Osório, visita à praça de desportos do S. C. Pelotas, chá oferecido pelo 9º batalhão de caçadores, seguida de banquete no Club Comercial, espetáculo no Guarany, por fim baile no Club Comercial (marcado para as 11 horas da noite). A comitiva italiana era acompanhada por um séquito de autoridades locais, bem como jornalistas.
            No Guarany, evento que contou com descrição mais acurada do jornalista, era muito esperado os concertos do pianista Buffaletti e do violoncelista Bonucci. Antes, contudo, marcha executada pela banda do 9º de Caçadores anunciou a chegada dos nobres visitantes: “ao lado do Dr. Intendente, o Embaixador Giuriti estendeu o braço na bela e sugestiva saudação fascista, correspondendo aos aplausos vibrantes da assistência.”
            Ao fim das peças musicais, antes da ida do séquito ao baile, o dr. F. O. proferiu “um eloquente discurso de saudação à Itália, cheio de encantadoras imagens e de profundos conceitos”.
            A matéria era ilustrada por três clichês, sem nenhuma foto da Embaixada na cidade de Pelotas: de Edda Mussolini (com a legenda: “Edda Mussolini, filha de Benito Mussolini, a insigne colaboradora na obra extraordinário que foi o grande surto do Fascismo na Itália gloriosa”), de D’Annunzio (com a legenda: “D’Annunzio, o poeta soldado”) e de Benito Mussolini fazendo a saudação fascista (por conter autógrafo na imagem, ou por não ter necessidade de explicação à época, não conta com legenda).


O grande dia do Fascismo


            Nas páginas do Diário Popular, do dia 30 de outubro de 1924, a um título que chama a atenção: A Nova Itália. Abaixo deste título, sob a moldura de folha, duas fotos eram encontradas: uma de D’Annunzio outra de Mussolini.
            Mussolini, figura histórica, dispensa maiores apresentações neste artigo. Contudo a memória sobre Gabriele D’Anunnzio não é tão presente aos brasileiros contemporâneos. Foi escritor e político, que exerceu grande influência sobre as estratégias de Mussolini de organização do estado fascista. Há vários debates hoje sobre até que ponto esta influência foi válida e se Mussolini não corrompeu as ideias do poeta – mais socialista que propriamente fascista. Contudo, há época, as menções a D’Annunzio era frequente entre os apreciadores de literatura ocidental bem como entre os camisas pretas.
            Abaixo das duas fotos, o título “O grande dia do fascismo” e a explicação do que se propunha ali: “A patriótica seção, em Pelotas, do disciplinado partido que, na gloriosa Itália, obedece a direção suprema do eminente político Benito Mussolini comemora, hoje, o 2° aniversário da entrada em Roma da valorosa falange ‘Camisa Preta’. Saudamo-la pela querida data.”
            Às 20 horas, na Bibliotheca Pública de Pelotas, estava programada recepção com a seguinte organização:
            * conferência pelo dr. E. R., secretário da seção;
            * conferência pelo dr. J. L. O, em nome dos brasileiros simpáticos à política italiana;
            * sob a regência do maestro A. C., seria cantado o vibrante hino fascista (“Giovinezza, Giovinezza!”) por um grupo de senhorinhas e cavalheiros.
            O ato, que foi público, contaria também com a presença de autoridades, corpo consular e exmas. famílias de ambas as nacionalidades.

Reunião Fascista


            Em novembro de 1926, o jornal A Opinião Pública trouxe matéria breve sobre o desenrolar da reunião fascista que ocorreu na noite da última segunda-feira, mais especificamente, uma reunião da seção local do partido nacional fascista.
            O presidente da seção local, dr. E. R., “abriu sessão mandando ler o verbal da última reunião e dando uma relação do trabalho executado pelo diretório durante estes últimos meses.” O objetivo da cerimônia realizada era o de “comemorar a data histórica da marcha sobre Roma, mas aproveitava a ocasião para solenemente declarar aceitos onze novos inscritos e apresentá-los aos companheiros de fé e de trabalho.”
    O presidente revisou algumas normas disciplinares que devem ser seguidas pelos fascistas no estrangeiro, em especial sobre o respeito às leis e autoridades locais, antes de entregar os distintivos de fascista aos neófitos.
            Depois, teve início a comemoração da data através de eloquente discurso patriótico, revisando os fatos históricos referentes à marcha, encorajando os companheiros à busca do “completo triunfo do maravilhoso empreendimento que virá reconduzir a Itália ao caminho glorioso da antiga Roma.”
            Fechando a sessão, leitura de telegramas e comunicações de fascistas de várias partes do globo.

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Fonte: Cedov – Bibliotheca Pública Pelotense. A Ilustração Pelotense foi acessada por meio da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.


Continua...

quarta-feira, 11 de março de 2020

Entreguerras em Pelotas – Parte 02 O Registro dos Alemães


Entreguerras em Pelotas – Parte 02
O Registro dos Alemães


A. F. Monquelat
Jonas Tenfen


            Ao centro da capa de A Opinião Pública, da primeira quinzena de dezembro de 1917, há o edital do registro dos alemães, o qual era feito informar pelo dr. Firmino Paim Filho, chefe de polícia do estado. Circundando este edital, uma miríade de informações e temas relativos ao assunto – a Primeira Guerra Mundial -, bem como reclames e efemérides, como: o que os brasileiros devem observar, telegramas, nota do ginásio pelotense, chuva, exposição industrial, o arrendamento de navios brasileiros à França, os horários das missas para o amanhã daquela edição.
            Antes de adentrarmos o tema principal deste texto, vamos observar um pouco Brasil, Rio Grande do Sul e Pelotas por estas notícias.


O que os brasileiros devem observar

            A resposta a este título veio logo em seguida, ainda em negrito mas não sublinhada: procurar instruções militar e formar linhas de tiro.
            Em seguida, três informes, os dois primeiros de Venceslau Brás, então presidente da República, e do presidente do estado de São Paulo.
            Todos os brasileiros deveriam guardar estas palavras do presidente da República: “Respeitar a pessoa e os bens dos alemães, porque o governo atuará severamente àqueles que atentarem contra a defesa nacional. [...]”
            Em seguida, palavras de Venceslau Brás aos governadores dos estados: “É oportuno que aconselhemos maior parcimônia nos gastos de qualquer natureza, públicos ou articulares. Intensifique-se, tanto quanto possível, a produção dos campos, afim de que a fome que bate já as portas da Europa, não aflija também, e, antes, possamos ser o celeiro de nossos aliados. [...]”
            Por fim, as palavras do sr. presidente do estado de São Paulo  aos presidentes das Câmaras Municipais e juízes de direito de todas as comarcas: “É indispensável uma imediata congregação de esforços em prol da nossa preparação militar. Para tanto, peço o seu máximo esforço em prol da constituição de linhas de tiro nas localidades que ainda as não possuam e para o crescente desenvolvimento das já existentes, [...]”

Telegramas

            A saber, era por meio de telegramas que notícias de fora da região chegavam à imprensa local em dias mais próximos dos ocorridos. Outros meios, como outros jornais e correspondentes, possuíam ainda o inconveniente da demora em estabelecer contato ou serem distribuídos pela cidade.
            Por isso, neste setor, encontramos as atualidades da guerra na Europa, bem como repressão de germanófilos em Porto Alegre, assim como denúncia contra sociedade de senhoras alemãs que ainda ensinavam a língua estrangeira em centro comunitário. Chamou a nossa atenção, contudo, notícia vinda do Rio de Janeiro:
            “Grande Número de pessoas em cartas ou pessoalmente oferecem-se ao ministério da guerra para se alistarem e seguirem para o corpo de aviação da Inglaterra, conforme o convite feito pelo rei Jorge.
            Na impossibilidade entretanto de aceitar os oferecimentos, o ministério da Guerra mandou responder aos voluntários que só poderia enviar para a Inglaterra oficiais ou praças, mas não civis.”




            Reproduzimos, na íntegra, o edital do dr. chefe de polícia do estado do Rio Grande do Sul, Firmino Paim Filho, divulgado nos principais jornais da época, referente ao registro de súditos alemães residentes neste estado.
            “O chefe de polícia do estado, em virtude de ordem superior e das necessidades do serviço policial criadas pelo estado de guerra entre o brasil e o império da Alemanha, para devida observância e conhecimento de todos, faz público o seguinte:
1 – Na chefatura de polícia, nesta capital, e em todas a delegacias de polícia, nos outros municípios, será instituído, o registro dos súditos alemães residentes no estado, havendo para este fim um livro especial, aberto, numerado e rubricado, segundo o modelo n° 1.
Parágrafo único – o registro compreenderá somente os homens e mulheres que vivam com economia própria.
2 – As pessoas a que se refere o número anterior comparecerão, espontaneamente ou em virtude de chamamento, à chefatura de polícia, nesta capital, e às subchefaturas e delegacias de polícia, nos outros municípios, e apresentando-se às respectivas autoridades, farão as seguintes declarações:
            seus nomes e pronomes [sobrenome], bem como os de seus pais; lugar e data de seu nascimento; lugar de seu último domicílio, profissão, nome, idade, nacionalidade de sua esposa e filhos.
3 – De cada pessoa que comparecer à chefatura de polícia para o registro a que se refere o n. 1, far-se-á a identificação datiloscópica para o fim de se lhe expedir a respectiva carteira de identidade.
4 – A chefatura ou a delegacia de polícia, conforme o caso, fornecerá a todo o súdito alemão, que se registrar, um documento de acordo com o modelo número 2.
Parágrafo único – Todo súdito alemão que não apresentar o citado documento à autoridade policial que lho solicitar, será convidado a comparecer perante ela para explicações.
5 – Os súditos alemães já identificados pela polícia, e possuidores da respectiva carteira, não ficam isentos do registro.
6 – Todo súdito alemão que se mudar de um município para outro fará a respectiva comunicação à autoridade do município que deixar e à do município em que for residir. Iguais comunicações farão entre si as autoridades policiais.
7 – Todo súdito alemão que entrar em qualquer dos munícipios do estado, inclusive o da capital, é obrigado a comparecer à chefatura ou à delegacia do munícipio ondo for morar, para submeter-se ao registro.
            Os hotéis casas de pensão e outras habitações coletivas não poderão tê-los hospedados por tempo maior, sem que exibam a prova do registro.
8 – Nenhum súdito alemão poderá deixar o território do estado sem se apresentar à chefatura ou delegacia de polícia do lugar onde residir para o fim de receber o necessário passaporte assinado pelo chefe de polícia, na capital e pelos subchefes e delegados de outros municípios.
9 – Nenhum súdito alemão poderá desembarcar em qualquer dos portos do estado ou nele penetrar pelas suas fronteiras terrestre sem exibir passaporte ou algum outro documento comprobatório de sua procedência e boa conduta.
10 – Os proprietários de hotéis, casas de pensão, hospedarias e outras quaisquer habitações coletivas serão obrigados a mandar diariamente à chefatura nesta capital e às delegacias nos outros municípios os nomes dos respectivos hóspedes e suas procedências para que se possa exercer completa fiscalização sobre as pessoas sujeitas ao registro estabelecido neste ato.
11 – Enquanto durar o estado de guerra ou enquanto não resolver o contrário o Governo Federal, fica proibido o comércio de armas e munições de guerra, sujeitas à apreensão quando encontradas no comércio e em poder de particulares.
            As armas e munições assim apreendidas serão entregues, mediante as formalidades legais, ao comandante militar da força federal que existir no lugar; nas localidades, porém, onde não houver guarnição federal, o material apreendido será, com as mesmas formalidades, recolhido à Intendência Municipal, onde deverá ficar sob necessária guarda e vigilância.
12 – É vedada a residência de súditos alemães nas proximidades de quartéis, estabelecimentos e obras militares ou em qualquer outro ponto que os domine, sempre que a autoridade entenda prejudicial aos interesses nacionais.
13 – As buscas e apreensões domiciliares, em qualquer caso, serão sempre feitas de acordo com as leis vigentes.
            Chefatura de Polícia, em Porto Alegra, 4 de dezembro de 1917.”

continua....
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Fonte: CEDOV – Bibliotheca Pública. As imagens do gabinete de Venceslau Brás e de Jorge V são da WikimediaCommons.

quarta-feira, 4 de março de 2020

O Entreguerras em Pelotas – Parte 01 Ainda desdobramentos da Primeira Guerra Mundial


O Entreguerras em Pelotas – Parte 01Ainda desdobramentos da Primeira Guerra Mundial


A. F. Monquelat
Jonas Tenfen



            A série que iniciamos hoje é um desdobramento de série anterior desenvolvida nas páginas do Diário da Manhã no ano passado e que pode ser conferida na íntegra no blog pelotasdeontem.blogspot.com. A primeira foi dedicada aos desdobramentos da Primeira Guerra Mundial em Pelotas; esta, por sua vez, é dedicada ao Entreguerras (adotamos esta grafia para a palavra, sem hífen e com inicial maiúscula, para nos referir ao período entre as duas Guerras Mundiais).
            Por escolha, alguns eventos não serão abarcados aqui, no intuito de pesquisar e dar a tais eventos série própria. Antes de entrarmos propriamente no Entreguerras, no ano de 1917 ainda encontramos nas páginas dos jornais de Pelotas notícias e acontecimentos dignos de nota, como

Tiro 31 em excursão ao Retiro


            A Opinião Pública, no primeiro mês de 1917, recuperou entusiasticamente o evento que há tempos acompanhava. Partiria no dia daquela edição, às 23 horas, saindo da sala de armas à Praça da República, a companhia do patriótico tiro 31. Tratava-se de uma marcha treinamento ao Retiro, devidamente acompanhada pelas bandas de música cornetas e tambores.
            O comando coube ao capitão Otto Hecktheuer. Os diversos pelotões marcharam sob direção dos seguintes oficiais: 1° tenente-atirador Manoel Candido da Cruz, 2° tenente Neptuno B. da Silveira e 2° tenente Arthur C. Carneiro. O pavilhão nacional foi conduzido pelo 1° sargento-atirador Arthur Avila. Garantindo o bem-estar em caso de passamento, a ambulância seguiu sob a direção do tenente-atirador sr. dr. José Botafogo.
            Toda a passeata foi fiscalizada pelo segundo tenente do exército, sr. Waldemar Schneider, instrutor do Tiro 31.
            Tinha-se por objetivo acantonar nos galpões do sr. João Schild, na várzea do Retiro.
            Convidava o jornalista aos moradores do local e veranistas a prepararem condigna recepção à “valorosa rapaziada, que bivacará nos matos de propriedade do sr. Gustavo Brauner”.
            Já noticiado, e talvez por isso o entusiasmo com que a passeata fora entendida, foi promovido por uma “comissão de gentis senhoritas” um “baile em homenagem à briosa mocidade, com distribuição de flores naturais”.
           

Escola Brasileira Alemã


            Em páginas de A Opinião Pública, de início de fevereiro de 1917, encontra-se a propaganda sobre as atividades da Escola Brasileira Alemã, um “acreditado estabelecimento de instrução primária e secundária, há já longos anos funcionando nesta cidade com um reputado corpo docente, afim de proporcionar melhores acomodações aos seus discípulos” que “acaba de ser instalado em magnífico prédio próprio, à rua Marechal Deodoro, nº 927”
            Aos interessados, a instituição mantinha cursos práticos de alemão e francês, escrituração comercial, desenho, pintura, música e piano, matérias indispensáveis ao ensino primário e aulas de trabalhos com agulhas. Não cuidando apenas do espírito, também era oferecido métodos para o desenvolvimento físico através de aulas de ginástica sueca.
            A todos os públicos – meninos, meninas e senhoritas – em sistema de externato e semi-internato.
            Na conclusão da nota, um vocativo aos senhores chefes de família com a recomendação do “importante estabelecimento de ensino entregue ao zelo e competência da exma. Cecília W. Motta.”

Temor infundado?


            Diário Popular, de abril de 1917, próximo à extração da loteria do estado e de interessante matéria intitulada “A ciência na guerra”, trouxe matéria noticiosa e de opinião sobre o “Temor Infundado” – era esse o título – de agricultores, “alemães e teutos, diante dos últimos sucessos aqui ocorridos,” estavam receosos de “trazer seus produtos ao mercado desta cidade, temerosos de alguma agressão do elemento popular”.
            Como mostrado em série anterior, este não fora um medo infundado, uma vez que a cidade de Pelotas fora palco de desdobramentos da Primeira Guerra Mundial, em especial, repressão violenta contra jornal e falantes de língua alemã.
            Com tudo, a matéria afirma que “este temor só se explica pelas notícias adulteradas e boatos terroristas em circulação entre essa laboriosa gente, que nada tem a temer, podemos afiançar, pois ninguém cogitou nem cogita de usar de qualquer violência.”
            É lembrado também que as autoridades estão aí para manter a ordem e a segurança públicas e que estas não permitiriam, de forma alguma, qualquer desacato – por mais leve que fosse – contra as liberdades do comércio dos pequenos agricultores. Assim, os colonos podiam seguir vindo à cidade, pois nada lhes sucederia.
            Outro pedido aos colonos foi para não darem ouvidos aos maus conselheiros, aos boateiros e especuladores que estavam se aproveitando dos ocorridos para comprarem os produtos fora da cidade e revenderem por melhor preço.
            “Contra estes, mais do que contra imaginários atentados, devem estar de prevenção os colonos” era o pedido e conselho final da matéria.

 Buscas e nota melancólica 

            Em 31 de outubro do mesmo ano, nas páginas de A Opinião Pública, foi noticiado que “em observância a ordens superiores, a polícia judiciária deu hoje minuciosa busca no Club Concordia.”
            Buscou-se com a batida encontrar armas e munições, mas nada fora encontrado. A batida foi feita com autorização da diretoria do Club.
            À casa do sr. Carlos Ritter também foi procedida busca, contudo atrás de estação radiofônica clandestina. O que também não se confirmou.
            É noticiado que outras casas de súditos alemães também estavam sendo revistadas.
            Por fim, uma nota melancólica: “Depois de escritas estas linhas soubemos que por intervenção do sr. coronel Avelino Borges, subchefe de polícia, o Club Concordia resolveu, a partir de hoje, suspender o seu funcionamento.”


Tolerância prejudicial


            Foi publicado nas páginas de A Opinião Pública – próximos de informações sobre o aeroplano “Cidade de Pelotas”, encerramento do certame juvenil do Club Diamantinos, voluntários que partiam para Rio Grande e pequena nota sobre espião alemã -, matéria sem assinatura com o título “Tolerância Prejudicial”.
            O primeiro parágrafo deixou às claras as intenções do texto: “A tolerância brasileira é um característico da raça e que muitas vezes nos tem trazido dissabores”.
            Clamava-se pelo fim de panos quentes para com os súditos do Kaiser na cidade, espiões e colaboradores do Kaiser. Tolerância tal que ainda era consentido que alemães genuínos continuavam em vários cargos de repartições públicas.
            Ainda no desenvolvimento, o anônimo autor lista “um tal Peters, fiscal da intendência no Mercado Central; Hugo Kupfer, empregado na Mesa de Rendas, e Oscar Rost, da oficina de drenagem e encarregado pelo governo do Estado da construção de boias”. A saber, “este último, então, teima, dentro da própria repartição, em desrespeitar os brasileiros, só falando em alemão, apesar de admoestado por mais de uma vez”.
            A matéria seguiu descrevendo todos os meios desumanos e violento que o Kaiser, a Alemanha e seus súditos praticaram e estavam dispostos a repetir no Brasil. Não imaginava o brasileiro, alertava, o que o alemão era capaz de fazer em nome da legenda “Uber alles Deutchaland”.
            Depois de perguntar como que nós brasileiros não reagíamos a tudo que era alemão depois de saber destes fatos, a matéria era encerrada com o pedido de “prezemos a nossa dignidade de povo independente, defendamos a existência de nossa nacionalidade ameaçada pelo imperialismo prussiano.”

continua...

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Fonte: Cedov – Bibliotheca Publica Pelotense

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Chafariz das Nereidas, Sereias e Walt Disney


Chafariz das Nereidas, Sereias e Walt Disney

A. F. Monquelat
Jonas Tenfen



            O texto de hoje foi motivado por uma pergunta feita durante uma caminhada. Cortando pela Praça do Chafariz, fui interpelado sobre a razão de as figuras em forma de sereia terem duas pernas, mesmo que com escamas, no lugar daquele formato de corpo de peixe, como estamos acostumados a ver em filmes e animações. Recorrendo à história de Pelotas, mitologia clássica e aos estúdios Disney, a explicação se mostra fácil.
            O livro “Fontes d’Art no/au Rio Grande do Sul”, de José Francisco Alves, nos informa que “A instalação deste chafariz foi aprovada e, 23 de abril de 1873, para a então Praça Dom Pedro II, atual Praça Coronel Pedro Osório, a Principal de Pelotas. Seu funcionamento efetivo – fornecer água potável – ocorreu em 1874, conforme comunicado da Companhia Hidráulica à Câmara, em 4 de abril. O chafariz, instalado até hoje no mesmo local, foi o principal desses equipamentos que a cidade recebeu, sendo mais conhecido como ‘Chafariz das Nereidas’. Trata-se do mesmo modelo, em “escala reduzida”, do famoso chafariz apresentado pelas Fundições DURENNE na Exposição Universal em Londres (1862), lá instalado até 1872. Posteriormente, esse mesmo chafariz teria sido transladado para a capital da Escócia, Edimburgo, transformando-se naquele que é hoje um dos mais divulgados cartões-postais daquele país: o Chafariz Ross [Ross Fountain]. O notável modelo foi criado pelo escultor ornamentista Jules Klagmann, com a colaboração de Ambroise Choiselat.”
            Algumas páginas adiante no mesmo livro, encontramos a descrição de todo o chafariz, mas vamos citar apenas da Base: “no centro do tanque principal (interno, de ferro) ergue-se a estrutura central, vertical, do chafariz propriamente dito. Sua larga base com um diâmetro de aproximadamente 1,5 m e altura de 1,2 possui quatro nichos. Em cada um deles, consta um par de ninfas e uma carranca de leão no centro. Os pares de ninfas, em pose simétrica, vertem água das ânforas que apoiam em seus ombros para dentro de conchas com bordas rebuscadas. Das bocas dos leões também verte água para as mesmas conchas. As ninfas, que estão recostadas na estrutura sobre as conchas, estão seminuas e têm cauda de peixe em lugar das pernas, como bem devem ser essas típicas entidades mitológicas do reino de Tritão [Netuno]”.
            Ao autor da descrição faltou um pouco de atenção ao detalhe de que estas ninfas, como notou a autora da pergunta que nos motiva a escrever este texto, não têm caudas de peixe no lugar das pernas. Dois pares de pernas para cada uma, com saliências que lembram escamas e nadadeiras no lugar dos pés.
            Havemos de falar sobre nereidas, ninfas e sereias. A tradução do dicionário de mitologia de Pierre Grimal manteve a versão mais afrancesada da palavra, por isso encontramos na obra a entrada “nereides” (embora apresente como válida a versão aportuguesada). Filhas de Nereu e Dórias, netas de Oceano, sua quantidade é bastante variada, havendo assim entre 50 e 100 destas entidades. Seria muito interessante descobrir se as quatro figuras do Chafariz da Praça representam alguma nereida específica, como Tétis, Cálice ou Iera. Segundo o dicionário, “elas personificam, talvez, as inúmeras vagas do mar.”
            As ninfas, por sua vez, são representações várias dos campos, bosques e das águas, no mais das vezes, das águas doces. Sua ascendência muda dependendo do pesquisador, mas a versão mais corrente é que são filhas de Zeus. Divindades secundárias, estão no mundo, se cronologia é possível, a menos tempo que as nereidas e intervém mais nos afazeres e acontecimentos humanos.


            Por fim, as sereias. Ainda com Grimal, “as Sirenes viviam numa ilha do Mediterrâneo e, com a sua música, atraíam os marinheiros que passavam nas redondezas. Os barcos aproximavam-se perigosamente da costa rochosa da ilha, despedaçavam-se e as Sirenes devoravam os imprudentes. Conta-se que os Argonautas passaram perto das Sirenes, mas Orfeu cantou tão melodiosamente enquanto o navio Argo este ao alcance da sua música que os heróis não sentiram qualquer tentação de abordar a ilha [...] Quando por lá passou, Ulisses, prudente e curioso ao mesmo tempo, ordenou a todos os marinheiros que tapassem os ouvidos com cera e o amarrassem ao mastro, proibindo aos seus homens que o soltassem quaisquer que fossem os pedidos que ele lhes fizesse”.
            Os mitos mais antigos sobre as sereias as representam como parte humana, parte ave. Com o tempo, talvez por se tratar de uma ilha no mediterrâneo o lar dessas criaturas, pareceu mais conveniente aos artistas atribuírem a elas feições de peixe. Contudo, papel importante para a passagem de ave para peixe tiveram os marinheiros ao longo da história, pois vendo grandes mamíferos nadando – como a beluga – à noite, acabaram por enxergar ali formas femininas.
            Voltando às pernas, é muito mais comum encontrar representações para sereias como as ninfas do chafariz, do que da maneira como estamos condicionados a imaginá-las. O problema de imaginar um ser aquático feminino nadando é o inconveniente moralista de imaginá-las despidas. Parece que é algo muito antigo, mas é mais recente do que muitos imaginam: a marca da rede de café Starbucks é baseada em uma representação escandinava de uma sereia. Como o passar do tempo, a marca foi ficando mais estilizada e cada vez mais próxima da face da entidade mitológica, tentando disfarçar o exercício de flexibilidade que esta fazia.
            Problema semelhante enfrentou Walt Disney quando quis fazer uma animação com sereias para suas Silly Simphonies. Um monarca do fundo do mar tem suas amadas sereias sequestradas por piratas e a narrativa se desenrola para o resgate. Mas como fazer um desenho animado para crianças sobre sedutoras figuras femininas nadando sem vestimenta? A solução foi dar a elas cauda de peixe da cintura para baixo: ainda femininas, mas assexuadas. Esse é o enredo do episódio “King Neptune”, da série Silly Simphonies, de 1932. Essa animação popularizou o formato ocidental mais aceito da entidade mitológica, sendo à exaustão reproduzido em livros infantis, filmes e séries de televisão. De forma algum se quer afirmar que foram os Estúdios Disney os primeiros a desenharem sereias do modo como estamos habituados, basta olhar para o Brasão de Armas de Varsóvia, que é baseado em imagens do século XV. Afirma-se que, tal qual o monstro de Frankenstein, foi um filme que popularizou uma forma de uma personagem de ficção.

            Se hoje o Chafariz das Nereidas fosse montado, é possível que as figuras que despejam águas nas conchas tivessem outro formato, mais familiar a nós. Por falar em familiaridade, talvez seja esse o espanto da interlocutora ao questionar sobre as figuras do Chafariz: ela mesma nunca antes havia notado que elas possuíam pernas.
            Para encerrar, uma nota filológica. A palavra “sereia” como utilizamos vem do português arcaico “sereã”, que, por sua vez veio do latim, “sirena, -ae”, que por sua vez veio do grego. É raro o uso em português de “sirene” para “sereia”, embora a tradução do dicionário de Pierre Grimal a utilize. “Sereia” e “sirene” têm o mesmo radical, e, digamos, sempre prestamos atenção ao canto de ambas. “Serenata” e “seresta”, contudo, têm outra origem etimológica.

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Fontes: Consultamos a 5º edição do Dicionário de Mitologia Grega e Romana, de Pierre Grimal, publicado no Brasil pela Bertrand, e também o “Fontes d’Art no/au Rio Grande do Sul”, de José Francisco Alves. A imagem do Brasão de Armas de Varsóvia é wikcommons.