terça-feira, 20 de outubro de 2015

A maldição da “princesa cigana”


                                                                                    

         Outra lenda urbana desta cidade é a que diz respeito à praga ou a maldição de uma princesa cigana que por aqui esteve no final do século XIX e que, durante esta estada em Pelotas, teria contraído uma doença, motivo pelo qual foi seu povo, preocupado com o estado de saúde de sua princesa que não apresentava melhoras, buscar auxílio entre os médicos da cidade. 
         Tendo os médicos se recusado a atendê-la, por se tratar de uma cigana, veio a princesa a piorar e morrer; porém, diz a lenda, pouco antes de expirar, teria amaldiçoado a cidade nos seguintes termos: “esta cidade de hoje em diante não mais prosperará”, pelo menos, estas eram as  palavras que ouvíamos toda vez que alguém reproduzia a lenda.
         Difícil saber quando e porque nasce uma lenda; agora, quando alguma dessas é desfeita, perde o imaginário popular e muito de sua construção estético-literária. As lendas, sem exceção, são sempre mais bonitas que a realidade do fato nelas contido. A da praga ou a da maldição da princesa cigana lançada sobre a cidade de Pelotas não somente serviu para que alguns, pelo menos os mais pessimistas, sobre o futuro econômico da cidade encontrassem uma justificativa para alguma crise ocorrida em dado momento, como também acabou contribuindo para que se estabelecesse outra, a de que, ainda hoje, caso algo seja pedido à princesa cigana venha o pedido a ser atendido.
         Vejamos, no entanto, o que existe de verdade nesta lenda urbana.
         Por volta do final de dezembro de 1882, chegou à cidade de Pelotas um grupo de mais ou menos 50 pessoas, entre homens, mulheres e crianças que, segundo a imprensa pareciam ser beduínos ou coisa que o valesse. 

         Este grupo assentou seus arraiais na extremidade da Rua Conde d’Eu [atual Avenida Bento Gonçalves], mais precisamente à Rua Manduca Rodrigues [atual Professor Araújo] dispondo as sete tendas que de acordo com um jornalista da época, simbolizavam os pecados capitais e ali estavam prontos a decifrarem, na cintilação das estrelas, o destino de “nós outros, simples mortais”.
        Dia 28 de dezembro, o “chefe da tribo” compareceu na Secretaria de Polícia, apresentando uma enorme quantidade de papéis a fim de receberem o competente visto para permanecerem acampados na cidade. 
         A presença de ciganos não era bem vista apenas em Pelotas, mas também em cidade alguma, pelo menos da província. As manifestações contrárias da imprensa eram publicadas desde a chegada, bastando qualquer incidente envolvendo-os para que, em seguida, houvesse denúncia e fosse pedido que as autoridades os enxotasse para fora da cidade. Assim sendo, dia 4 de janeiro de 1883, um jornal local se manifestava, através do noticiário, dizendo que diversos eram os comentários feitos quanto à estada, na cidade, “dos beduínos” acampados lá para os lados da Rua Manduca Rodrigues [atual Professor Araújo].
         Uns diziam serem eles uns especuladores, que andavam a explorar a credulidade das pessoas de “ânimo fraco”, apanhando-lhes o dinheiro com artimanhas e falcatruas; outros, que eram trabalhadores honestos procurando ganharem licitamente suas vidas empregando-se nos ofícios de caldeireiros e ferreiros; outros ainda, que os “beduínos” não passavam de uns espertalhões que “embaçavam” a quem lhes chegasse ao alcance das unhas.
         Considerando uns e outros juízos, concluía o jornalista por serem eles tanto uma coisa quanto outra, agora, culpado mesmo era aqueles que, acreditando nas teorias de Mesmer [Franz Anton, 1734-1815], René (?) e Catarina de Médici [1519-1589], e fazendo reviver o reinado da bruxaria, ali, no acampamento dos ciganos, iam consultar o oráculo, incomodando-se depois com os resultados.
         Quem não quisesse ser explorado que não os procurasse, advertia o jornalista, deixassem-nos em paz que não haveria razão para queixas.
         Pois é, tivesse o Sr. Carlos Ritter os deixado em paz não teria motivo para queixar-se, dia 10 de janeiro de 1883, nem pagar a exorbitância que lhe foi cobrada pelo conserto que deu aos “beduínos” fazer em utensílio de sua cervejaria, isso “por não querer se incomodar”. 
         É chegada a hora de vermos a morte da lendária princesa cigana ocorrida em Pelotas, e a famosa praga por ela lançada antes de expirar.
        A morte da “princesa cigana” se deu no dia 2 de março de 1883, em Pelotas, vítima de uma longa enfermidade da qual já sofria quando na cidade chegou.
         Em vista da morte, aqui ocorrida, os boêmios – outra das expressões usadas para se referir aos ciganos – adquiriram alguns palmos de terra no cemitério público da cidade e lá construíram o túmulo da “velha Cigana Terena”, mulher do chefe da tribo acampada em Pelotas desde dezembro de 1882.
         A morte da cigana Terena foi muito sentida pelo seu povo e, em vista do doloroso acontecimento, não lhes restou outra atitude que não a de observar o ritual que o caso exigia.
         O corpo de Terena foi colocado na tenda, do também velho chefe, sobre uma colcha caprichosamente bordada. Ao lado do cadáver, consternados puseram-se os ciganos, inclusive as crianças, sendo que os mais velhos empunhavam quatro enormes velas de cera.

         A cada momento o chefe dos ciganos começava um canto, espécie de miserere [composição musical], no que era acompanhado por crianças, homens e mulheres; formando-se uma gritaria melancólica envolta por uma nuvem de resina aromática que queimava junto ao corpo da cigana.
         Na madrugada do dia seguinte, duas das bandas da cidade contratadas pelos “beduínos” tocavam no velório, à entrada da tenda mortuária. O sepultamento dar-se-ia, com as honras que a alta hierarquia da finada exigia, dia quatro, pela manhã.
         Em sinal de respeito à memória da esposa do chefe da tribo, os ciganos andavam pelas ruas de Pelotas sem chapéu.
      Aos curiosos que ao acampamento afluíram nos dias dois e três, em número extraordinário, eram proibidos de entrar na tenda. Diz a imprensa, que ali compareceu, ser enternecedor e sublime contemplar a dor e o luto que ia naquela improvisada aldeola, em que a falecida era objeto de adoração.
         O enterro da cigana Terena Caldara, este era seu nome, diz a imprensa da época fora o mais concorrido que até aquele momento Pelotas havia presenciado.
         Da tenda mortuária, foi o corpo de Terena conduzido à mão até a ponte do arroio Santa Bárbara [local próximo ao “camelódromo”], sendo então colocado em um carro fúnebre de primeira classe
        Ao lado do carro fúnebre [coche, antiga carruagem fechada], segurando as alças do caixão, iam os boêmios, inclusive o velho chefe, levando cada um uma vela acesa com um tope de crepe.
         À frente daquele numeroso cortejo, iam as duas bandas de música, entoando tristes e melodiosos trechos musicais.
            Os ciganos durante todo o trajeto manifestavam a dor que sentiam em gritos de pesar e dramáticas entoações.   
        Os rituais da encomendação aconteceram na capela do cemitério, diante de expressivo número de curiosos.       
            O ataúde foi cercado por tochas acesas, conduzidas por lacrimosos rostos que refletiam a tristeza que lhes ia à alma.
            Depois, foi o cadáver colocado no túmulo construído pelos ciganos
       O caixão era de madeira polida, forrado interiormente de zinco e custosos adornos.
     O velho chefe abraçado ao cadáver de sua antiga companheira não tinha ânimo e resignação para dar-lhe o último adeus, sendo dali arrancado a muito custo.
         As mulheres e crianças soltavam gritos enternecedores.
       Finalmente, dado o corpo ao sepulcro aquele angustiado grupo de ciganos voltou as suas tendas.
         No dia seguinte, em romaria, ainda foram ao cemitério.
          Um dos vários jornalistas que cobriram a cerimônia fúnebre, encerrando a notícia, comentava o acontecido dizendo haver assistido a muitos funerais mais de acordo com as exigências requisitadas pela moda que tinha culto entre os povos civilizados, mas nunca tão tristes e mais sentimentais ou tampouco com o cunho de tão eloquente sinceridade. 
         Há de convir o leitor não haver na morte de Terena Caldara, aqui enterrada em um dos túmulos, hoje, o mais visitado de nosso cemitério público, o menor indício de omissão de socorro por parte dos médicos daquele período, além do que a cigana já chegou doente  em Pelotas, portanto, a enfermidade  que a matou não foi contraída nesta cidade.
         De qualquer forma, a razão do túmulo da cigana Terena ser o mais visitado e a ela serem atribuídos certos poderes, além de gozar da fama de atender aos pedidos daqueles que a ela recorrem, nos leva a perguntar: não será isso mais uma lenda urbana de Pelotas ? Quando e porque surgiu e se disseminou essa lenda?








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Fontes: acervo da Bibliotheca Pública Pelotense
Revisão do texto: Jonas Tenfen

12 comentários:

  1. Parabéns ! Feliz por ter seu texto sempre por perto,basta um clic! Adorando!

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    1. Obrigado Marga, é sempre importante sabermos a opinião e ler comentário de pessoas que nos lêem. Valeu. Abraço.

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  2. Dia de finados se aproxima, vou deixar uns troco no túmulo da cigana. Fera o texto...

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  3. Parabéns pelo texto, bem escclarecedor...

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  4. Muito bem explorada a história em muito bom texto. Obrigado pelas informações! Parabéns!

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  5. Adorei o texto, já havia ouvido falar da Cigana que faz milagres, mas não sabia de sua história.
    Um abraço

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  6. Valeu Erica, realmente a história da cigana Terena é uma história fantástica, digna de um documentário. Abraço.

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  7. Parabéns, excelente história da nossa cidade. A cigana Terena tem uma história fascinante.

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  8. Só esqueceu de contar sobre ela ter morrido devido a ter sido negado o socorro pelo alto escalão Católico da Santa Casa de Misericórdia, e desse povo ter vindo pra cá exatamente pra pedir ajuda para a cura de Therena.

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