sexta-feira, 23 de outubro de 2015

José Pinto Martins, um charqueador como tantos...




                A história da indústria saladeiril em Pelotas é, digamos, impossível de ser contada ou escrita por total falta de documentação que tornasse possível fazê-la, entretanto, e paradoxalmente, a história da cidade de Pelotas insiste em ser reiterada a partir de suposta instalação de certa fábrica de carne seca por um português oriundo de Aracati, Ceará, que de lá, fugindo de uma seca, veio parar aqui e logo orientou os demais a segui-lo nessa prática.

         Ora, se tal fato histórico tivesse um mínimo de credibilidade e uma fonte documental, por menor que fosse para atestá-lo, não haveria porque estarmos dizendo o até então já dito e menos ainda para dizermos o que, na continuidade, estaremos dizendo.

         O português José Pinto Martins esteve instalado com estabelecimento de charqueada às margens do Arroio Pelotas não há a menor dúvida e, para comprová-lo, existem diversos documentos que atestam tal ocorrência. Agora, insistirem em dizer que Pinto Martins chegou por volta de 1777-80 fugindo de uma seca e aqui se instalou, dando início a indústria do charque no território sul-rio-grandense já é outra narrativa, uma história que não aconteceu como já o documentamos em nosso livro, de parceria com V. Marcolla, Desfazendo Mitos ( 2010 ).

          Entretanto, não é por demais repetirmos que José Pinto Martins, a não ser que tivesse o dom da onipresença, não poderia andar embarcado, no eixo Mossoró-Aracati-Recife, transportando sal, charque e mercadorias para seus irmãos mais velhos, charqueadores e comerciantes no Ceará, até o ano de 1787, ano em que as viúvas dos irmãos comerciantes e charqueadores, com a morte dos maridos, resolveram acabar com os negócios desses e encerrarem tais atividades.

         É provável que José Pinto Martins e seu irmão mais moço, Antônio, somente a partir do ano de 1787 tenham vindo para o Sul e, em Pelotas, tenham se estabelecido por volta do ano de 1790, muito embora a primeira vez que surge o nome de José Pinto Martins, no continente de São Pedro do Sul, tenha ocorrido em 1796 conforme foi documentado em nosso trabalho, já citado.

         De qualquer forma, ainda que estranho e não admissível, é pessoas formadoras de opinião, inclusive inseridas ou parte do corpo de instituições, insistir em manter a ideia de José Pinto Martins ter chegado e com ele a técnica do fabrico do charque em 1780, algo equivocado já na ideia de que no Continente de São Pedro tal prática já não ocorresse. No Continente, desde a década de vinte, charqueava-se, e dessa prática há indícios inclusive toponímicos, e, se não fossem suficientes para demonstrá-la, há o fato documental atestado por Silva Paes em correspondência enviada ao Vice-rei, em fevereiro de 1737, que não deixa dúvida quanto ao ato e uso de charqueações na região da atual cidade de Rio Grande, o que também pode ser visto em nosso trabalho.

         Embora seja de alguma importância histórica saber-se quem foi o primeiro charqueador a instalar tal indústria no hoje município de Pelotas, é, em caráter mais amplo, um fato irrelevante considerando ter surgido a cidade de Pelotas como fruto do agropastoreio e, em especial, pela ação do governador Sebastião da Veiga Cabral da Câmara, quando então, movido pela necessidade de assentar alguns casais oriundos de Maldonado, na época domínio da coroa espanhola e que de lá haviam retornado para o domínio da coroa portuguesa passando dificuldades em Rio Grande, que não podia proporcionar-lhes terra para cultivo ou gêneros de subsistência, retirou parte da área da Sesmaria do Monte Bonito, em 1781, cujo sesmeiro era o capitão Ignacio Antônio da Silveira, e repartiu em datas nas quais instalou vinte casais de retornados, agricultores em sua maioria.

         Dessas datas, pequenas extensões de terra, irá surgir, na freguesia de Pelotas quase duas décadas depois daquele ato do governador Cabral da Câmara, certo número de charqueadas  não muito depois dessa decisão,  o que se pode verificar no Alvará de 31 de janeiro de 1812, concedido por Vossa Alteza Real, o príncipe regente D. João VI, reproduzido em nosso trabalho O processo de urbanização de Pelotas (2010), novamente em parceria com V. Marcolla.

         Disse e continuarei dizendo que a presença de José Pinto Martins não tem a menor relevância no contexto histórico da indústria do charque; assim como, sabermos ou não quem foi o primeiro charqueador de Pelotas é um fato irrelevante, pois, a cidade de Pelotas não tem a primazia no fabrico do charque no estado do Rio Grande do Sul.

         No hoje território do Rio Grande do Sul, charquear já era uma prática estabelecida desde os primórdios do século XIX, embora sem o intuito de comercialização ou abastecimento da armada portuguesa. Com tal propósito, documentalmente, podemos afirmar até agora ser uma atitude tomada por João Cardoso da Silva - o famoso personagem de João Simões Lopes Neto no conto “O mate do João Cardoso” – quando estabelecido com estância e charqueada às margens do Rio Piratini nas ruínas do Forte de São Gonçalo, hoje região pertencente ao município de Arroio Grande.

         É importante salientar que tal iniciativa de João Cardoso só foi possível ser levada adiante por contar com a aquiescência do então governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, o mesmo a quem a cidade de Pelotas deve o seu antecipado surgimento, que facilitou e estimulou as experiências para a produção do charque, pois, além de outros motivos, dentre eles estava o principal, desonerar os cofres da Coroa portuguesa bastante sangrada com as aquisições do charque junto aos irlandeses que a abasteciam, como também eram esses os que forneciam a carne de moura ou carne embarricada [charque] à armada espanhola.

         Dentre as facilidades proporcionadas ao até então pioneiro João Cardoso da Silva, esteve o acesso ao sal, produto indispensável no fabrico do charque, mas, que por força de contrato entre a Coroa portuguesa e o arrematante do Estanco do Sal, todo o sal transportado a partir de Santos (SP) em direção ao Rio grande do Sul, era considerado contrabando podendo ser apreendido pelo Contratador, situação que perdurou até próximo do ano de 1800. Esta proibição é dentre outras, uma das causas que invalida a tese da presença e todo o mais atribuído ao português José Pinto Martins no ano de 1780 e o início da produção em massa do produto charque na região de Pelotas.

         Quanto às experiências realizadas na charqueada de João Cardoso, segundo palavras do próprio quando afirmou em um dos documentos, que reproduzimos em nosso livro Desfazendo Mitos, “que o Suplicante [João Cardoso da Silva] é um vassalo benemérito, pelos bons serviços que tem prestado a Sua Alteza Real; que não tem outras terras, senão aquelas quatro léguas e meia compradas e que é um dos mais antigos colonos deste Continente [de São Pedro], que em grande parte lhe deve o seu aumento e auge em que se acha [encontra], por ter sido ele [João Cardoso] o primeiro que instituiu aqui [no Continente] a fábrica de carnes de charque, dando aos [de]mais as ideias e noções necessárias para um ramo  tão vantajoso ao Estado o que é bem conhecido de V. Exª”.

         Há ainda, dentre outros, o documento em que João Cardoso diz que “foi o primeiro que estabeleceu aqui a fábrica de carnes [charqueada], trazendo, para isso, mestres a sua custa, no ano de 1780”.

         Quanto ao português José Pinto Martins, que os desinformados e adeptos de pioneirismos teimam em afirmar ter sido e feito o que não foi e não fez, vamos encontrá-lo aqui, no Continente de São Pedro, por primeira vez em documento datado de 1º de outubro de 1796, assinando, junto a outros moradores do Continente, uma representação a Sua Majestade clamando por sal, para que pudessem praticar as suas charqueações.   

         Ficou claro o porquê do título “José Pinto Martins, um charqueador como tantos...”?

         “Oh! Crioulo!... olha esse mate, diabo”.






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Referências bibliográficas: Monquelat, A.F.; Marcolla, V. Desfazendo Mitos. Pelotas: Editora Livraria Mundial, 2010 – Monquelat, A.F.; Marcolla, V. O Processo de Urbanização de Pelotas. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2010.
Revisão de texto: Jonas Tenfen

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