terça-feira, 10 de novembro de 2015

Da Tablada à charqueada*





Estamos em abril de 1882. 




     O canal de São Gonçalo, um canal levemente tortuoso e que tem, em média, 400 metros de largura, é envolvido, de ambos os lados, por planícies baixas; avistando-se muitas léguas ao fundo, do lado do poente, morros arredondados.
As planícies aluviais, bem acima do nível do canal, em geral coberto de macegas, apresentam-se com uns grupos eventuais de árvores e uma linha tênue de matas encostando as margens.
A atividade comercial da cidade é demonstrada pelo grande número de embarcações do porto; há, pelo menos mais de 50, sem levarmos em conta os vasos miúdos e as chatas.
A cidade é bem traçada, com ruas largas e um extraordinário número de belos prédios públicos e particulares, muitos se defrontando a um grande largo, como se fosse um parque ou jardim, em volta de um hotel, o melhor da cidade. As ruas esgalham-se de ambos os lados, abrigando as principais casas de comércio. 
Há um grande número de armazéns, muitos dos quais nada devem aos do Rio de Janeiro e, pelas ruas, paira um ar de prosperidade.
Esta cidade, com seus 20.000 habitantes, deve toda a sua prosperidade à indústria do charque, ou ao comércio com o interior, que diretamente dependente desta.
A parte meridional é quase plana, porém é praticamente coberta por terrenos abertos, próprios para pasto.
Uma das mais características e ao mesmo tempo mais selvagens e interessantes vistas de Pelotas é a Tablada.
A Tablada é um descampado quase liso e extenso, onde, de dezembro a maio, se vendem os rebanhos que chegam. 
Ali, rudes gaúchos, vestidos com a habitual camisa de chita, ceroulas fofas ou bombachas e ponchos riscados, galopam em todas as direções, mantendo os animais nos lugares e tentando evitar que as tropas se misturem. O gado, exausto das longas jornadas e espantado com aquela estranha cena, conserva-se junto, movendo os chifres e rugindo em tom de queixa.
Os charqueadores movem-se, rapidamente, aqui, ali e acolá, em belos cavalos, examinando as várias tropas, calculando-lhes o valor, com rapidez e precisão admiráveis, e fechando os negócios, às pressas, com estancieiros e peões.



    O mercado é muito ativo, dada a forte concorrência entre as duas ou três dezenas de charqueadores que ali comparecem; em geral, as boiadas inteiras são vendidas não muito depois das chegadas.
A tropa ou tropas, muitas vezes levadas para uma das charqueadas junto ao arroio Pelotas, são confinadas por muitas horas, em cercados, denominados de mangueiras.
As mangueiras se estreitam em ponta, numa das extremidades, onde se comunicam com um curral menor, chamado de mangueira de matança, capaz de represar 30 cabeças de gado juntas, afocinhando em ambas as extremidades, fortemente cercado, com um pavimento de pedras lisas ou chapões inclinados para a extremidade oposta à entrada; por fora da cerca e rodeando-a, há um passeio de tabuões para os trabalhadores.
A matança em geral ocorre pela manhã.
Lotada a mangueira da matança, é esta fechada e atiram um laço ao chifre ou à cabeça do animal; este laço, passado por um moirão, é preso a uma junta de bois ou cavalos, os quais são tocados imediatamente do curral, arrastando o animal laçado pelo declive escorregadio até embaixo; ali, fica diretamente debaixo da mão do desnucador, que ergue um punhal comprido e muito afiado, e o enfia no pescoço do animal, geralmente entre a primeira vértebra cervical e os ossos occipitais.
Aquele golpe não mata instantaneamente, porém, priva o animal de toda sensibilidade; a seguir o animal cai em um carro de plataforma, que está contínuo com o assoalho da mangueira; levanta-se a seguir uma porta, tirando-se rapidamente o carro, descarregam-no e põem-no de novo no lugar, a tempo de receber outro animal que, nesse meio tempo foi laçado.
Toda a operação leva em torno de um minuto e, na maioria das vezes, numa só charqueada e no decorrer de um dia, matam-se 600 a 700 cabeças de gado.
A carcaça, puxada do carro por um homem a cavalo, vai para o grande prédio em que são executadas as operações restantes, quase sempre executadas por escravos.
Esfola-se, rapidamente, o couro tomando cuidado, ao abrir o pescoço, de enterrar uma faca no coração, que ainda pulsa.
Acabada a esfolação se limpa a carne dos ossos em oito pedaços, que são jogados em estacas horizontais; dois trabalhadores hábeis cortam-na e retalham-na, então, de maneira que cada pedaço fica reduzido à espessura uniforme de cerca de 15 milímetros.
A esta operação utiliza-se um verbo especial: charquear; e, dele, derivam os substantivos charque, charqueada, charqueador, ...
Esfregado bem o sal na carne, empilham-na em camadas, primeiro sal, segunda carne, depois nova camada de sal e assim sucessivamente; as pilhas chegam à altura de vários metros, com o duplo efeito de impregnar a carne de salina e de escorrer os líquidos contidos nela, pela própria pressão; este efeito aumenta-se reempilhando no dia seguinte, de maneira que as camadas de cima, tiradas primeiro, formam a base de nova pilha, e são por sua vez comprimidas.
De 8 a 10 quilos de sal usam-se para a carne e penduram-na em varais, ao ar livre, para secar, tomando cuidado de, à noite, puxá-la para uma ponta do varal e cobri-la com lona.
Para a secagem, preferem tempo um tanto enuviado e ventoso; se chove, empilha-se de novo a carne e, para o fim da safra, quando as chuvas são fortes e mais frequentes, conservam-na empilhada até chegar o tempo seco de setembro e outubro; desta maneira mantém-na quase sempre sem estragar.
Os couros, bem limpos, são metidos na salmoura, que escorre das pilhas de carne; depois de 24 horas, tiram-nos, cobrem-nos de sal, e estão prontos à embarcar para os mercados da Europa, onde os preparados deste modo são muito apreciados e mais valorizados.
A gordura e o sebo são espremidos por aparelhos especiais e dispendiosos, em que se emprega o vapor de alta pressão.
Os ossos incineram-se nas fornalhas que produzem este vapor, e a cinza deles resultante vai para a França, onde a usam como adubo.
  As línguas são vendidas aos estabelecimentos especiais que as preparam; os chifres são exportados para diversos usos e, em algumas charqueadas, utilizam o sangue para fazer gelatina.
Cerca de 400.00 cabeças de gado são abatidas anualmente, com pequenas variações de um ano para outro.
Estes animais, negociados na Tablada, totalizam uma operação de mais ou menos 22 mil contos de réis, que são embolsados pelos estancieiros.


 
 
*Texto concebido a partir das impressões deixadas pelo Dr. Theodoro Fernandes Sampaio, engenheiro, geógrafo, escritor e historiador brasileiro, quando de sua passagem por Pelotas.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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 Acervo: Bibliotheca Pública Pelotense - CDOV
Revisão de texto: Jonas Tenfen

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