terça-feira, 22 de março de 2016

A mais que bela Impéria

Jonas Tenfen

Na imprensa de Pelotas, no fim do século XIX e início do século XX, sobravam notas sobre as atividades ilícitas do jogo e da prostituição, sem contar as denúncias e protestos de colunistas cansados do barulho, baderna e violência, além das cartas de denúncia de moradores vizinhos a antros de perdição. As notícias sobre este tema tratavam quase sempre das consequências das brigas de amor (facadas, navalhadas, tiros, morte) e dos resultados dos debates sobre a legitimidade do jogo ou a integridade da banca (mais facadas, navalhadas, tiros, morte). Por ser tão frequente este tipo de situação, os jornalistas precisavam exercer seus dotes literários para prender a atenção do leitor, pois prisões propriamente dito dependiam da atuação da polícia e alguns órgãos de segurança.
Assim, é possível fazer um pequeno dicionário das citações, nomes e referências a prostitutas na imprensa daquela época. Segue, pois, uma versão resumida, de semelhante compêndio: cocote, decaída, duvidosa, hetaira, horizontal, Impéria, marafona, marajó, meretriz, Messalina, mulher de má nota, mulher de vida airada, mulher de vida alegre, mulher de vida fácil, mundana... Há as mais diversas origens culturais ao elencado: desde a Grécia no apogeu de Atenas (hetaira era uma cortesã, acessível apenas aos nobres), da cultura portuguesa (marafona é uma boneca, quase sempre de trapos, e sem expressões faciais), do vocabulário dos marinheiros (marajó é vento que pelo fim da tarde agita as águas de algumas regiões) e toda uma apropriação da cultura católica na avaliação da atividade (em relação ao decaimento, à facilidade dessa vida, à alegria dessa vida). 
Dois substantivos fazem referência a personagens históricos. Um, Messalina, diz respeito à terceira esposa do imperador romano Cláudio, tendo vivido entre os anos 17 e 48 de nossa era; um nome presente nos livros de história e de pesquisa fácil. O outro, ao contrário, não é rapidamente reconhecido ao leitor contemporâneo; o que explica a razão do presente texto.
Imperia Cognati nasceu em Roma em 3 de agosto de 1455, filha de Diana di Pietro Cognati, cuja ocupação era a prostituição; seu pai se chamava Paris, por vezes referenciado como de Paris; ainda se especula quem teria sido esse indivíduo, embora as fontes costumam apontar para alguém com funções na Igreja. A jovem Impéria demonstrou facilidade em aprender literatura e música, o que a provinha de contatos que permitiram que ascendesse da posição de prostituta para a de cortesã. Sua casa sempre fora frequentada por intelectuais, escritores, políticos e pintores; sem esquecermos os elementos da nobreza e clérigos. Um desses frequentadores fora o pintor Rafael Sanzio (1483 – 1520), que a contratou para posar como protagonista para o afresco O triunfo de Galatea e, também, como Safo no afresco Le Parnasse.


A morte de Impéria se deu em 15 de agosto de 1511, e sobre a causa pairam dúvidas. As citações mais frequentes apontam para envenenamento por vontade própria, mas, contrariando tal ideia, Pietro Aretino afirmou que ela “morreu bem, rica, em sua casa e honrada”. Desta afirmação, o importante é o adjetivo “honrada” que exclui o suicídio, considerado grave desonra à época. Nesse ínterim, vários poemas já haviam sido publicados sobre ela, a citar três: Imperiae panegyricus, de Giao Vitale; Fundana visio siper obitu ninphalis corpusculi pulcherrime Imperie, de Pietro Cappadolce; e, Lamento dela Imperia, de Giuliano Ceci. Com mais ou menos qualidade literária, os textos sempre ressaltam a beleza fora do comum de Impéria (o pulcherrime no título do segundo poema pode ser traduzido para o português como pulquérrima ou belíssima), sem contar que ela fora modelo para pelo menos dois trabalhos de Rafael, como mencionado. Cristalizava-se o modelo da cortesã perfeita aos moldes do Renascimento.
Quem apontou essa perfeição em um conto foi o médico e humanista francês Béroalde de Verville (1556 – 1626). Embora autor de uma considerável gama de títulos, versando sobre os mais diversos temas (desde jocosos a graves, mundanos a metafísicos), este escritor ainda é reconhecido pelo satírico Le moyen de parvenir, de 1617. No capítulo VII (intitulado Couplet), é narrada a visita que o gentil-homem de Lierno fez às famosas cortesãs italianas, especificamente à mais famosa de todas. Impéria era perfeita, ao ponto de – conforme é narrado – os gases que seu corpo emitia serem perfumados. A narrativa se encaminha pelo espanto do gentil-homem diante do inédito, até um desfecho obviamente escatológico.
Em Verville, essa é a única citação à Impéria, uma reminiscência na narrativa e uma personagem secundária durante todo o enredo. Quem leu com bastante atenção ao Le moyen de parvenir e deu maior destaque à personagem foi Balzac.
Honoré de Balzac (1799 – 1850) foi romancista e crítico literário francês. Seu trabalho mais conhecido é o ciclo de romances La comédie humaine: uma tentativa de análise do ser humano tendo a França como palco. Com longas descrições, prosa intensa e ágil, Balzac ainda hoje é lido como um retratista mordaz dos dramas da burguesia (pequena, no mais das vezes), das idas e vindas da Fortuna costumeiramente ligada a grandes heranças. Outro projeto seu, grandioso por sinal, foi a publicação de Les cents contes drolatiques, em revista, entre 1832 a 1837; depois, em livro, apenas Les contes drolatiques: a recolta passava de uma centena. Por manter um estilo – tanto na grafia quanto na sintaxe – notadamente medieval, esse projeto não foi bem aceito pelo grande público, embora tenha sido lido com muita atenção por intelectuais (e pessoas dispostas a enfrentar a escrita quase criptográfica) como Gustave Doré (1832 – 1883) que produziu 425 desenhos a partir da obra, ilustrando inclusive o conto La belle Imperia.
O pano de fundo histórico deste texto é o Concílio de Constança, entre 1414 a 1418, cujo objetivo principal era o de acabar com o Grande Cisma Papal (naquele instante, a Igreja contava com mais de um papa, os quais disputavam o poder da legitimidade). Nobres, príncipes, eleitores, clérigos e representantes do Sacro Império Romano estavam em Constança, todos participando de modo direto na defesa dos interesses – o que Balzac viu como local particularmente propício para a atividade das cortesãs. Entre esses, o jovem, e fictício, Philippe de Mala se reuniu, para servir ao seu dignitário e para terminar a própria formação.
Passeando pelas ruas de Constança, à noite, depois dos trabalhos oficiais, o jovem de Mala vê uma mulher belíssima andando na rua, entre companhias não exatamente dignas. A visão daquela mulher pôs o firme propósito de “salvá-la” em seu coração. Levantando informações – com membros da igreja – de quem seria semelhante anjo, finalmente descobriu o nome, ao qual o narrador do conto acrescenta a semelhante descrição: “Impéria foi a mais preciosa, a mais fantástica jovem no mundo, embora ela tenha se tornado algo mais ao deslumbrante e belo, foi aquela que melhor entendeu a arte de enganar os cardeais e suavizar os mais árduos soldados e opressores do povo.” Dando explicações sobre a influência das cortesãs na política e assuntos de Estado, o mesmo narrador foi bastante conciso e exato alguns parágrafos adiante: [era] “A verdadeira rainha do Concílio.” E o enredo segue de Mala despistando concorrentes – alguns verdadeiramente perigosos – até conseguir adentrar a alcova de Impéria, com as consequências que isso trará aos dois.
Não é o único conto em que Balzac se utiliza da personagem Impéria, mas é, seguramente, o mais conhecido, talvez pela mordacidade com que ele tratou o Concílio, talvez por ser o primeiro conto do livro. De fato, foi essa narrativa que reavivou a figura da cortesã, cuja leitura influenciou outros escritores e jornalistas franceses, que, por fim, foram influenciar os brasileiros. Na nossa imprensa, ao menos na imprensa pelotense, houve um deslocamento de sentido, mudando o significado literário de “impéria” de cortesã para jornalisticamente “prostituta” (em semelhança com o “hetaira” já citado). Por semântica, poderíamos debater até que ponto esses dois sentidos (prostituta e cortesã) são sinônimos, embora ressalte-se que há uma diferença significativa entre os públicos de atuação dessas profissionais. Enquanto a literatura pode ocupar-se de classes mais abastadas, afinal é literatura, o jornalismo nem sempre o pode, ou mesmo quer, atuar nesse expediente.
Quem leu com muita atenção e admiração o conto de Balzac foi o escultor alemão Peter Lenke. Morador da comunidade de Bodman-Ludwigshafen, próximo ao lago de Constança, fora contratado para esculpir uma estátua em homenagem ao Concílio. A estátua, de 9 metros de altura e 18 toneladas, foi erguida clandestinamente depois de pronta, pois era a imagem de uma mulher de belos atributos físicos, usando alguns símbolos de poder imperial e eclesiástico, deixando entrever, não tão sutilmente, sua sexualidade por meio de um vestido leve. Como se pode imaginar, foi um escândalo, mas, digno de nota, escândalo que não durou muito: desde sua aparição ao público, se tornou um dos pontos turísticos mais visitados em Constança.
A estátua foi feita em cimento polido e, dependendo da incidência do sol, rebrilha em tons dourados: uma imagem em ouro. Em cada uma das mãos da estátua, há uma figura: uma representa o imperador Segismundo; a outra, o papa Martinho V. São figuras disformes, com expressões doentes e arqueadas pelo peso de algo, enquanto a figura de Impéria olha com sobriedade para o vazio. A estátua não as oprime, não as esmaga entre os dedos, ao contrário, as eleva – e sustenta! – aos céus.





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Notas bibliográficas:
As informações a respeito de Imperia Cognati são do Dizionario Biografico, disponível em <http://www.treccani.it/enciclopedia>. Os livros Les moyens de parvenir e Les contes drolatiques – com as ilustrações de Doré - foram acessados a partir do Internet Archive (https://archive.org/). A foto da estátua de Impéria, às margens do lado de Constança, é apresentada aqui em um dos ângulos possíveis, pois se trata de uma imagem em 360°, disponível em <https://pixabay.com>. 

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